Laudo Ferreira

Yeshuah (Devir), Auto da barba do inferno em quadrinhos (Peirópolis), Feitiço da Vila (Jupati Books), São Paulo dos Mortos (Zapata)

 

Quer pedir um café? Suco?

Um expresso.

(Ao garçom) João, vê dois expressos pra gente, por favor. Obrigada. (ao Laudo) Vou te fazer algumas perguntas desnecessárias, tudo bem?

São as melhores. Manda!

Segura! Que diabos aconteceu com você para fazer quadrinhos?

A coisa toda foi simplesmente acontecendo, nada premeditado. Vem vindo lá de trás, desenho desde muito pequenino e sempre foi quadrinho ou algo que eu julgava ser. Mas tinha lá, a “arte sequencial”. Já maior, com meus dez, doze, treze anos, já fazia meus gibizinhos em cadernos de desenho e as famosas canetinhas. Daí foi só amadurecendo. No início dos anos 80, meus primeiros quadrinhos “sérios” foram publicados por uma editora aqui de São Paulo, ali começou tudo, porém essa editora fechou e aí então que tomei conhecimento e fiz contato com o movimento fanzineiro, que estava se aquecendo naquela época. Os famosos fanzines xerocados.

Bons tempos…

Participei intensamente deste período, não fazendo os meus fanzines, mas participando de um monte, do Brasil todo, praticamente. E aí, fui seguindo caminho, entendendo a estrada, que é muito importante, compreendendo o caminho que está se seguindo e estou aqui ainda. Com a maturidade de um carinha de 52 anos, com a virilidade, o tesão, a gana de produzir de um adolescente. É uma sina, meu ofício, minha história.

Eu dava quarentinha e olhe lá. (risos. O café é servido. Agradecem ao garçom. Enquanto Laudo dá sua primeira bicada no café, Deisy pergunta sem cerimônias) Laudo, o que mais te deixa excitado em uma narrativa gráfica? Física ou mentalmente, tanto faz. Fique à vontade. (agora é ela quem dá a primeira bicada)

Tudo. Gerar uma história, pensar em suas possibilidades. Perceber em alguns casos sua infinitude. Perceber que tudo pode ser feito numa HQ. Qualquer assunto. Criar os personagens da trama visualmente, os tais concepts, isso acho um tesão, ir além das possibilidades deles, procurar sair do lugar comum. Se entregar, posteriormente no processo de criação, do desenho e no final, o tremendo prazer, os orgasmos que é ver seu trabalho à venda e mais ainda, leitores saboreando sua obra. Indescritível.

(Com malícia) É um mundo de prazeres!! Ui! (risos) Só pra acabar com a farra, o que é mais broxante?

Muita coisa. Muita.

Um mundo de desprazeres também! (rindo e bebendo seu café)

Quando as pessoas te formatam, pelo quase nada que conhecem de você e sua obra, não entendem que sou uma pessoa sujeita a transformações e claro que meu trabalho, minha obra também. Que tenho absoluta liberdade de permitir fazer o que quiser e obviamente, o leitor de gostar ou não. E também, alguns assuntos, esses sim, um tremendo porre: “Dá para viver de quadrinhos?” ou “Qual o futuro dos quadrinhos?”. Assuntos punheta, que não vão a lugar nenhum (uma punheta até vai, hein?!), (Deisy irrompe em riso estratosférico) enquanto o mais importante seria saber do autor o porquê da sua obra, o porquê tratar destes assuntos. Discutir mercado, especulações futuras, é até interessante, mas existe uma carga de inferioridade, de depreciação, de perdedor, de lá é melhor, aqui a gente tá tentando, que acho que não impulsiona nada. Isso é muito broxante, há uma gama de autores, tremenda, que tem muito mais a dizer do que só discutir o gosto da bolacha recheada.

Deisy não consegue se segurar. Está dando vexame de tanto rir. Pior. Ela se engasga com a saliva.

Porraahf, Laudo… Cof, cof rrrhhaaagh… Assim você me mata… (respirando fundo por uns bons segundos, recompõe-se. Limpa com guardanapo o café que derramou na mesa. Por sorte não sujou a blusa) Mas homi… Já gostava de você. Agora eu amo! (Laudo sorri garbosamente) E que broxada! (risos saudáveis) Vou ter que mudar de assunto porque tá demais! (pigarreando) Uma vez o Rafa foi categórico, como ele sempre é, e disse que os quadrinhos NÃO são o primo pobre do cinema. Acredito que você compactue da mesma ideia. 

Não são mesmo. Quadrinho é quadrinho. Pode se comunicar com outras artes, como as outras comunicam com quadrinhos. É isso. (bebendo seu café)

Mas diga aí um quadrinho que seria legal ver nas telonas, Laudo. Vamos fazer nossos amiguinhos ganhar uma grana com a cessão de direitos autorias ou morrer tentando.

Tem muita HQ legal que renderia bons filmes. “Bando de dois” do Danilo Beyruth, que é meio lugar comum, todo mundo acha isso. “Km Blues” do Daniel Esteves, “Quilombo Orum Ayê” do André Diniz, que é uma história linda, linda. “Talco de vidro” do Quintanilha. Já imaginou um filme baseado numa HQ do Marcatti??

Todo santo dia. (bebe um pequeno gole do café para molhar a boca antes da próxima pergunta) Uma quadrinista foda (fora a Bechdel, Marjane e Laerte que já foram amplamente citadas) e porquê? 

Priscyla Vieira, criadora das tirinhas da personagem Amely. Sou fã dela há muitos anos, e a honra de ser seu amigo. Talentosíssima. Lá atrás começou a produzir suas tiras num campo onde a predominância masculina era forte e mostrou ser genial. Acho fantástico o que ela fez e vem fazendo, discreta, na dela, mas se fazendo plenamente presente.

Ah, adoro os hormônios da Amely!  A Pri (olha eu fingindo intimidade) é uma coisa mesmo. Quem sabe ela não passa por aqui, (virando-se para câmera imaginária) assim como quem não quer nada, hein, Pri? Hein? (ao Laudo) Não sei se você leu o quadrinho Gosto do Cloro do Bastien Vivès…. Um casal de personagens está nadando na piscina. Tem uma cena onde ela diz algo debaixo d´água e ficamos sem saber o que ela disse. Aquilo me pegou de jeito. Existe alguma cena nos quadrinhos que vale a pena comentar aqui?

O silêncio nas HQ’s. Isso é fabuloso. Um tempero sutil, que é preciso saber faze-lo numa história e quando se aprende e principalmente se acerta… Uau!

Uau!

Não tenho apego a essa ou aquela HQ, reminiscências de minhas leituras quando criança, jovem ou adolescente, o que quardo são sensações que algumas HQ’s trouxeram, sentimentos percebidos. Isso é sério. O sentimento final, a sensação de absoluta liberdade e desapego a essa ou aquela convenção, partido, seja lá o que for que essa sociedade nos enfia que há ao terminar de ler “V de vingança” do Alan Moore e do David Lloyd, é algo que me marcou muito na época de sua leitura. (matando o café)

É um sentimento poderoso, sem dúvida alguma. Vou te fazer uma pergunta indecente. Posso? Não é algo que eu queira perguntar, mas preciso seguir um roteiro. Se você fosse um personagem masculino ou feminino dos quadrinhos, quem seria? Desculpa.

Valentina do Crepax.

Ah, Val, minha linda Val… Imagine que você está na pele dessa Mulher e seu futuro, por algum motivo, parece desesperador. O que você gostaria de fazer exatamente agora?

Tomar um saboroso café da tarde, assistindo o dia ir embora, o sol se pondo… aí, depois, deixar tudo explodir.

Bem Valentina mesmo. Última pergunta e prometo não te aporrinhar mais. Ao menos, não por enquanto. (piscadinha) Mas gostaria que você fosse sincero, Lau. Como foi para você ser abduzido?

Tremenda experiência. Ainda mantenho algum contato e meu implante na mão esquerda, quase todo o dia lateja muito, e não sou canhoto.

Sério?! Posso ver? (pegando a mão esquerda de Laudo, tentando achar o implante)

O sol se põe coincidindo com a série de explosões que se inicia. Eles não conseguem acreditar em tamanho presságio. Entreolham-se interrogativamente. Deisy começa a enxergar outra pessoa à sua frente. Incrédula, estremece.

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