André Toral

Cheguei um pouco antes à Belmore Cafeteria, como de costume. Pedi um café e saquei da bolsa a invasão holandesa do séc. XVII. Estava deslizando meus olhos pelas páginas, quando ele chegou. Uma figura alta, elegante, dono de uma das cabeças mais lindas que já vi. Guardo os Holandeses antes que ele veja. Pagar de baba ovo, não né?

Oiii! Quer pedir um café? Suco?…

Uma garrafinha de água mineral com gás super gelada e um expresso com uma gota de leite frio. Sem açúcar mesmo.

Esse é dos meus! (o garçom apático já estava ao nosso lado anotando os pedidos) E me vê mais um cafezinho, por gentileza. (ele sai) Querido, me conta: que diabos aconteceu com você para fazer quadrinhos? 

Nunca pensei nisso. Nunca “comecei” a fazer quadrinhos.

HAhaha, ótimo! Ninguém nunca pensa mesmo. Se fossemos pensar, acho que a última coisa a fazer, seria quadrinhos. (risos)

Sempre li muito e desenhei mesmo sem publicar. Ainda bem porque essas primeiras histórias eram horríveis!

Duvido. (pisco gentilmente para ele)

Tinha uma de um submarino alemão que era um desastre. Publicar mesmo só quando tinha 30 anos, já trabalhava como antropólogo e respondi um anúncio na Animal que chamava desenhistas inéditos. Tomei muitos “não” na cara.

O que seria da gente sem essas negativas, não é mesmo? (nosso pedido é servido. Agradecemos) E o que mais te deixa excitado em uma narrativa gráfica? Física ou mentalmente, tanto faz. Fique à vontade. (dou um golinho no café)

Desenho legal e uma história que te deixe curioso. O sinal disso tudo é quando você não consegue parar de ler. Gosto de histórias que, como diz o Marcelo D’Salete (sempre ele), valem a pena ser contadas. Ou então gostosas de ler, como a família Pato de Carl Barks. (tomando seu pingado)

Ah, adoro! Claro que ainda prefiro ver mais D´Saletes saindo impressos do que as velhas histórias sobre patos, mas PELOAMORDEDEUS, o que são essas reedições de luxo?! Ontem mesmo vi a edição dos anos de ouro do Mickey. Que impressão, que acabamento… Em paralelo, no cinema, sempre houve esse movimento de refilmar os clássicos. Mas parece que agora isso está mais acentuado. Estão refilmando coisas que foram feitas em menos de 10 anos. Como você vê isso? Existe alguma força obscura (luz dramática em mim) agindo por trás desses mecanismos? Ou é falta de roteiro mesmo?

E o que é mais broxante?

O contrário: desenho “matado”, feito sem esforço ou muito calcado em recursos digitais. Odeio quadrinizações pretensiosas e redundantes, como dividir um mesmo desenho em três quadrinhos… (acabo rindo) História ruim então, mata a obra na primeira página. Outra coisa que me broxa, desculpem os fãs do gênero, é super herói com super poderes, com capa e maiô apertado. Impossível de ler depois dos 16 anos. (André termina seu cafezinho)

HAHAHAH! É muita firulagem, não é mesmo? Tanta gente barbada se indispondo em discussões em torno dessa merda. Ainda bem que existe o outro lado da moeda. Aproveitando, me diz aí uma quadrinista foda e por quê?

PowerPaola. (abrindo a garrafinha d´água)

É disso que eu tô falando!

Sou fã de carteirinha.

Eu também! (mostro a carteirinha do fâ-clube. Toral não acredita) Tá pensando que é só você, meu bem? Rá! Bora registrar aqui para quem desconhece essa mujer. Responda ali para a câmera 1, por favor. Por que, Toral, por que PowerPaola?

Porque as histórias dela são pessoais, diretas e francas. Exatamente como ela ao vivo. Parece que foram escritas para você, especialmente. Personagens de carne osso, situações que atravessamos, gente como a gente. Amo. Não consegui parar de ler a série de Vírus Tropical que minha mulher ia me trazendo da Colômbia até chegar no último. (virando a garrafinha)

E… corta. Excelente. Não sei se você leu o quadrinho Gosto do Cloro do 7Bastien Vivès…. Um casal de personagens está nadando na piscina. Tem uma cena onde ela diz algo debaixo d´água e ficamos sem saber o que ela disse. Aquilo me pegou de jeito. Existe alguma cena nos quadrinhos que vale a pena comentar aqui?

Sim, uma cena do Tintin de Hergé que ele briga com um inglês ou americano que espancava um cule (puxador de riquixá) chinês com uma bengala. O personagem se voltava contra ocidentais para defender o “outro”, o não-branco, o colonizado que nunca tinha voz ou vez nas HQs. A partir desse momento vi que podia-se fazer política com HQ.

Sempre! Que me diga você. (dou duas espalmadas no dorso da mão dele)

E (sorrindo) entendi também que o autor é um personagem. Ao longo da obra ele muda e se transforma. Muitas pessoas numa só. Sim, porque por mais preconceituoso que Hergé tenha sido na sua juventude, ele tinha mudado e muito. Quadrinho é obra de pessoas comuns. Como você, Deisy, e eu e não feita por deuses. (bebendo um longo gole d´água)

Amém! (coincidentemente, um grupo de patriarcas do cristianismo ortodoxos entra na cafeteria chamando a atenção de todos. Eu, que não sou boba nem nada, aproveito para fazer…) Uma pergunta indecente. Posso? 

Sem problema.

Não é algo que eu queira perguntar, mas preciso seguir a droga de um roteiro. Se você fosse um personagem masculino ou feminino dos quadrinhos, quem seria? Desculpa.

Hum… deixa eu ver, personagem feminino… Já sei, claro: Petra Cherie de Attilio Michelluzzi, conhece?

Não

Uma holandesa espiã, milionária e gatíssima que pilota aviões na 1a. Guerra mundial. E tem lá suas aventuras com pilotos (ahãn…).

Hmmm, danadinha!

Vou pedir mais uma água, fiquei com a boca seca de tanto falar. Você quer alguma coisa?

É, acho que vou pegar mais um café pra mim. (mostro meu sorriso amarelado de café) Moço! (enquanto o garçom termina de antender os homens de mitra)

Se fosse um personagem masculino seria Tintin. Queria poder me identificar com outro personagem mais chique como Corto Maltese, mas pra ser 100% honesto: Tintin. (risos) A única coisa que eu seria diferente dele seria na maneira de vestir. Aquelas calças bombacha com meia 3Ž4 são horríveis!

Entendo. (tento esconder minhas pernas debaixo da mesa. Adivinhe o que estou usando… Pigarreio) Imagine que você está na pele do Tintin gem e seu futuro, por algum motivo, parece desesperador. O que você gostaria de fazer exatamente AGORA?

Eu é que peço desculpas pelo clichê: ir para uma praia da Bahia com a Paulinha, minha mulher, filhas e amigos, tomar banho de mar e dar risada, nada de mais.

Pelo contrário. Muito bem, última pergunta e prometo não te aporrinhar mais. Ao menos, não por enquanto. (piscadinha) Mas gostaria que você fosse sincero, Toral. Como foi para você ser abduzido? E não diga que a culpa foi dos holandeses. (o garçom se aproxima. Faço o pedido enquanto André confidencia)

Não sei se você vai entender minha resposta. Tenho medo de parecer maluco como o professor Girassol dando uma entrevista sem pé nem cabeça aos jornalistas no final de “O tesouro de Rackan”.

Hahaha, pode ir em frente, meu chapa! Talvez aqueles ali (aponto para o grupo ortodoxo) faça cara feia, mas já estamos acostumados, nénom?

Em todo caso, lá vai: adoro tudo que é extraordinário porque sou escravo da rotina. Na primeira abdução estranhei muito, mas depois ficamos mais à vontade, não sei se você percebeu… Da última vez que tentaram me abduzir deu tudo errado. O transporte deles caiu, coloquei os vivos numa caixinha e dava pedaços de alface e carninha crua, mas não adiantou, morreram todos, foi meio triste. Enterrei eles dentro da caixinha mesmo perto da amoreira que tinha na frente da minha casa em Amsterdã. É isso.

 

Jesus, me amarrota que estou passada! (os ortodoxos pensam que é com eles. Ignoro) Meu anjo, obrigada pela entrevista. Aceita uma sobremesa?

De nada, achei engraçadas as perguntas. Aposto que você pergunta isso para todo mundo… Vamos rachar uma tortinha de morango?

Mas é CLARO!!

Garçom, uma tortinha e duas colherzinhas por favor!

Na tv, acima do balcão, está passando um desenho animado antigo da Disney. Zé Carioca pergunta ao pato: “Donald, você já foi a Bahia?”

 

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