Eloar Guazzelli

 

Kaputt, Apocalipse Nau, Vidas Secas, Grande Sertão Veredas, O Pagador de Promessas e tantas outras.

 

DM – Quer pedir um café? Suco?

EG – Chimarrão.

DM – (ao garçom que estava por ali) Por gentileza, traz um chimarrão e um café duplo pra mim, por favor. Obrigada. (o garçom dá meio volta)

EG – Eles tem chimarrão aqui?

DM – Tudo e mais um pouco. Vou te fazer algumas perguntas desnecessárias, tudo bem?

EG – São as melhores.

DM – Que diabos aconteceu com você para fazer quadrinhos?

EG – Sempre que tive desfazer uma escolha na vida escolhi o caminho mais difícil. Quadrinhos não foi a única escolha, estudei Artes Plásticas e desde os anos oitenta faço desenhos animados. Escolhas quase insanas no Brasil.

DM – Não diria “quase”. (risos estrangulados) 

EG – Melhorou um pouco, mas na década de oitenta quando comecei, era atestado de loucura. Mas venho de uma geração que teve sua maior virtude e defeito na ideia de realizar coisas na contramão. Pelo menos na Porto Alegre daquela década era o pensamento hegemônico. Não existia a ideia fixa numa carreira como vemos hoje. O que não acho ruim também. Só me parece que pulamos para o oposto conceitual.

DM – E vamos pular cada vez mais. O que mais te deixa excitado em uma narrativa gráfica?

EG – A possibilidade de realizar um cinema barato.

DM – Ixi… (alerta vermelho) E o que é mais broxante?

EG – O retorno financeiro, pelo menos no Brasil. E o resto de preconceito também… essa coisa de ter de apelar para frases “como Fellini gostava de quadrinhos”… Deprimente.

DM – Mas você dizer que o que te excita na narrativa gráfica é a “possibilidade de realizar um cinema barato”,  é o mesmo que dizer que os quadrinhos são o primo pobre do cinema. O que reforça ainda mais esse resto de preconceito, não?

          A escuridão toma conta do lugar. Uma luz teatral incide sobre Guazzelli que, em um passe de mágica, está sobre um pequeno palco improvisado, ora vejam vocês!

EG – (com o microfone na mão) Caríssimos, tentarei delimitar melhor a questão. Seria bom que esta resposta se desse mesmo no âmbito do questionamento proposto, acho interessante falar disso.
Trata-se de uma abordagem sutil. (caminhando enquanto versa)
Sempre detestei ver os quadrinhos se auto-justificando, se atribuindo importância se escorando no cinema. Frases como Fellini ( ou Kurosawa ou Wim Wenders…ou Godard, etc…fica a gosto do freguês e a lista é longa…) adora quadrinhos podem causar efeito mas são testemunhas de uma humilhação. Portanto concordo com a autonomia dos quadrinhos e uma das poucas certezas que tenho é que esta linguagem já se afirmou como arte contemporânea e o século XX não pode ser entendido sem referências importantes ao seu papel. Ponto.

CLIENTE – Boa!

EG – O que gostaria de salientar é que a vejo quase como gêmea do cinema, pois nasce na mesma época e praticamente no  mesmo contexto, marcando  o início de uma cultura de massas onde divide públicos e temas. E acima de tudo tem uma estrutura muito próxima, onde os  planos de enquadramento que são uma espécie de “gramática”  constitutiva dos quadrinhos são praticamente comuns entre estas duas expressões artísticas. Eu digo brincando que estas linguagens são tipo aqueles gêmeos de novela, onde os quadrinhos representam  aquele mais desgraçado que viveu muitos anos preso numa torre feita de  preconceito, torre que só há pouco começou a ser desconstruída. Então, resumindo, apesar de ver sua enorme autonomia histórica e cultural gosto de pensar que às vezes – como no meu caso particular-  ela pode suprir também uma vontade de realizar fantasias de uma narrativa mais cinematográfica numa plataforma que pode ser mais acessível. Autores que se prendem menos aos valores gráficos do que a outras potencialidades narrativas…
Não sei se fui claro, este é um tema pra uma palestra longa e talvez meio chata, ahaha…

Uma salva de palmas recai sobre o quadrinista. As luzes se acendem.

DM – Perfeito, Guazze! Perfeito!! (de pé, batendo palmas, enquanto ele retorna à mesa, por baixo das saudações) Você é foda! (ele puxa a cadeira para sentar-se) Muito bom… Agora, solta pra mim um quadrinho que seria legal ver nas telonas? Vamos fazer nossos amiguinhos ganhar uma grana com a cessão de direitos autorias ou morrer tentando.

O garçom finalmente traz o chimarrão e o café.

EG – (pegando a cuia) El Eternauta, obra-prima do roteirista Hector German Hoesterhelds, assassinado  junto com suas quatro filhas. Mas parece que tem uma maldição. Ninguém consegue realizar. (puxando o mate)

DM – Sabemos muito bem que maldição é essa. Uma quadrinista foda e porquê? (bebo meu cafezinho sagrado)

EG – Muitas, mas fico com uma pioneira, Margie, a criadora de uma personagem genial, Luluzinha. Até hoje um guia contra a arrogância dos meninos e seus “clubes do Bolinha”.

DM – Incrível como ninguém a havia citado ainda. Não sei se você leu o quadrinho Gosto do Cloro do Bastien Vivès…. Um casal de personagens está nadando na piscina. Tem uma cena onde ela diz algo debaixo d´água e ficamos sem saber o que ela disse. Aquilo me pegou de jeito. Existe alguma cena nos quadrinhos que vale a pena comentar aqui?

EG – O final de Jesuita Joe e acima te tudo o final de Fun Home, tem uma delicadeza incrível. Mas acima de tudo tem uma cena em Maus. O protagonista pergunta ao seu analista – que, como seus pais era sobrevivente do Holocausto – como era a vida em Auschwitz. O cara não responde. Fica aquele silêncio que nos quadrinhos é representado magistralmente por quadros iguais até que o analista dá um pulo e grita BUUU! Susto tremendo. E o cara diz: “Era assim o tempo todo”. Uma coisa do tamanho de um Dostoiévski, de um Kafka, uma coisa genial.(só no chimarrão)

DM – Sim! Maus é imenso. Vou te fazer uma pergunta indecente. Posso? (pausa) Não é algo que eu queira perguntar, mas… Se você fosse um personagem masculino ou feminino dos quadrinhos, quem seria? Desculpa.

EG – Drácula. Na verdade penso num balé.

DM – Polanski ia adorar conhece-lo. Imagine que você está na pele do Drácula dançarino e seu futuro, por algum motivo, parece desesperador. O que você gostaria de fazer exatamente agora?

EG – Drácula venderia seu castelo pra Disney e antes de entrega-lo, faria numa noite uma de orgia de sangue para na manhã seguinte, abrir a porta e sair para um lindo dia de sol no inverno.

DM – Última pergunta, Guaze, e prometo não te aporrinhar mais. Ao menos, não por enquanto. (piscadinha) Mas gostaria que você fosse sincero. Como foi para você ser abduzido? (liquidando meu café)

EG – Salvou minha vida das armadilhas do  sucesso.

DM – Hhahahahah! Amém. Obrigada pela entrevista, amore. Aceita uma sobremesa?

EG – Ambrosia com cerveja. Gracias.

DM – Garçom!

Enquanto o garçom termina de atender a outra mesa, um pequeno morcego sobrevoa nossas cabeças.

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