Bear (Editora Nemo), Meu pai era uma montanha (Independente), Dora (Independente)
Quer pedir um café? Suco?
Suco! Suco de maracujá, meu favorito. Morango, se não tiver maracujá.
Acho que tem, sim. João! (chamando o garçom) Meu, você tem suco de maracujá?
Tem. Ela é sua irmã?
Bianca sorri.
Parece, né? Mas infelizmente não. O suco é de polpa?
Não. Natural.
Uhhh, ótimo! Vê um pra amiga aqui e eu vou de café mesmo. Ou melhor, manda um suco também, vai. De melancia. Tem? (o garçom balança a cabeça positivamente) Beleza, pode mandar. Valeu. (à Bianca) Vou te fazer algumas perguntas desnecessárias, Bi, tudo bem?
Claro. Perguntas desnecessárias às vezes são mais legais do que as necessárias.
Você tem um lado hedonista como eu?
Hum… suponho que sim. Mas é um lado recente e que vem se fortalecendo ainda. Curioso. Nunca tinha parado para pensar nele.
É uma característica dele não ser racional. (sorrindo meio de lado) Pois muito bem, “que os jogos comecem”! Que diabos aconteceu com você para fazer quadrinhos?
Talvez eu tenha batido a cabeça quando criança e perdido o amor próprio… Não sei responder com certeza. Só o que sei é que leio quadrinhos desde pirralha e aprendi a ler com a Turma da Mônica. foi amor à primeira vista. Quero fazer quadrinhos desde que me entendo por gente.
Se a falta de amor próprio foi por isso, acho que bati a cabeça vezes demais. (rindo frouxamente) O que mais te deixa excitada em uma narrativa gráfica? Física ou mentalmente, tanto faz. Fique à vontade.
Eu não sei apontar especificamente o que seria. Tem alguns quadrinhos que simplesmente explodem a mente. Acho que é uma junção de um traço bem utilizado (e nisso incluo o uso das cores e a expressividade do desenho), o tempo da narrativa e um bom texto. Tem coisas que eu gosto tanto enquanto leio que leio devagar para durar mais.
Pô, também faço isso!?
É o caso dos livros do Leandro Melite, por exemplo. Ou dos do Chris Ware (embora não tenha terminado Building Stories porque as histórias da abelha me deixam profundamente triste). Lembro-me também de quando eu li Três Sombras, do Cyril Pedrosa, e como o traço dele me encantou demais e como a história foi tão tocante. E também do choque de ler His Face All Red, da Emily Carroll, que tem um dos textos mais bem construídos para aquele tipo de narrativa. Gosto de HQs que me fazem sentir as entranhas se contorcerem de prazer, sabe?
Sei, é o mesmo pra mim.
Elas são poucas, infelizmente.
João traz os sucos com direito a uma jarrinha cada.
Que beleza! Obrigada, João. (bebendo do canudinho) Hmmmm. Tá bom isso aqui. Quer provar?
As duas provam o suco uma da outra. Ambos deliciosos.
E o que é mais broxante pra você, Bianca, dentro da narrativa?
Argh! HQs que tratam o leitor como se ele fosse estúpido. Detesto ser chamada de burra enquanto leio um quadrinho (ou livro, ou vejo um filme, que seja). Tem HQs que explicam tudo o que acontece para o leitor. É tão chato, tão frustrante… me deixa profundamente incomodada. E também detesto quando o texto é ruim. Fica muito difícil de ler quando o texto não te conquista, sabe?
E a coisa vira uma mula empacada. Não consigo continuar também. Continuando: Uma vez o Rafa foi categórico, como ele sempre é, e disse que os quadrinhos NÃO são o primo pobre do cinema. Acredito que você compactue da mesma ideia. Mas diga aí um quadrinho que seria legal ver nas telonas. Vamos fazer nossos amiguinhos ganhar uma grana com a cessão de direitos autorias ou morrer tentando.
Hum… não me leve a mal…
Jamais.
Mas os meus quadrinhos favoritos são justamente aqueles que eu acho muito fodas enquanto quadrinhos. Quadrinhos que usam e abusam das possibilidades dos quadrinhos. Quadrinhos que perderiam muito em força se fossem reduzidos às histórias que contam e traduzidos para o cinema. Se alguma das minhas HQs favoritas virassem filme eu gostaria que fossem adaptadas por alguém que manja tanto de cinema que consiga fazer correlatos da linguagem na telona. Que fosse capaz de tornar aquela experiência que era tão incrível como HQ igualmente incrível como filme. No final das contas eu prefiro não apontar quadrinho algum. Deixe que Marvels e DCs da vida continuem adaptando seus heróis para o cinema. (sorrindo)
Hahahah, deixe a Marvel e DC estragarem sua literatura. Uma quadrinista foda (fora a Brechdel) e por quê?
EMILY CARROLL! (em voz alta e ficando vermelha.)
Todos os clientes lançam olhares repressivos. Deisy ri com gosto, não dá a mínima para olhares repreendidos, levanta as mãos para o céu e clama:
EMILY CARROOool!!
As duas riem copiosamente. No fundo, pagando uma banana pra todos.
A Emily é a minha quadrinista favorita de todos os tempos. Eu compreendo que ela não revolucionou os quadrinhos como o Chris Ware e nem é tão potente quanto o Leandro Melite. Mas ela é minha favorita de todos. Absolutamente no topo. A narrativa dela, os textos dela… eles nos fazem mergulhar de tal forma na HQ que tornam a experiência muito real e viva. O traço dela é o meu ideal de traço. Gostaria de ter a versatilidade dela. E o modo como ela trata o terror é impressionante. Sou apaixonada por ela, fazer o quê?
Levar pra cama?
As duas clamam juntas: “EMILY CARROOoool!!”
Hahahaha, você é doida, mulher! (risos) Não sei se você leu o quadrinho Gosto do Cloro do Bastien Vivès…. Um casal de personagens está nadando na piscina. Tem uma cena onde ela diz algo debaixo d´água e ficamos sem saber o que ela disse. Aquilo me pegou de jeito. Existe alguma cena nos quadrinhos que vale a pena comentar aqui?
Li! Gostei demais!
Tem uma cena no “Você é minha mãe?“, da Alison Bechdel que me marcou muito. É aquele momento, quando ela tinha sete ou oito anos, que a mãe dela decide que ela já está velha demais para receber beijo de boa noite. E ela, para não demonstrar fraqueza, não faz qualquer tipo de objeção, mesmo que se sinta abandonada e triste. Mas é uma cena que me marca porque me faz lembrar de uma situação pessoal, não por ser particularmente boa como cena de quadrinhos.
(…)
Agora, uma que me marcou bastante e recentemente foi a cena em que a Cecília conversa com o Chris pela sacada do prédio, no Dias Interessantes, do Liber Paz. Embora eles estejam conversando um com o outro, o modo como o Liber montou torna aquela conversa uma espécie de dois monólogos simultâneos, o que me fez pensar muito em como parece que a gente sempre está falando sozinho. Também reforçou para mim a ideia do quanto somos egoístas. Não tem essa de conversar. Cada um fala de si, sempre. Eu falei dessa cena pra ele. Não sei se ele fez isso propositalmente. Mas achei muito foda mesmo.
Deisy assume uma postura mais séria.
Vou te fazer uma pergunta indecente. Posso?
Pode. Mas eu sempre coro com perguntas indecentes.
Não é algo que eu queira perguntar, mas preciso seguir um roteiro. Se você fosse uma personagem dos quadrinhos, quem seria? Desculpa.
Uh! Eu gosto dessa pergunta indecente! Hum… acho que a Nimona, da HQ homônima da Noelle Stevenson. Ela pode se transformar em qualquer pessoa ou bicho. Como a Mística. Só que sendo mais legal que a Mística porque ela não é de HQ de heróis. HAHAHAHA. E a Nimona é badass.
Nimona badass, motherfucker! (tentando quebrar um pouco da seriedade que se instalou nela) Imagine que você está na pele da Nimona e seu futuro, por algum motivo, parece desesperador. O que você gostaria de fazer exatamente agora?
Me sinto jogando RPG, aqui.(Deisy sorri) Acho que faria a única coisa possível, no lugar dela: viraria um dragão e poria fogo em tudo antes de sair voando pra bem longe (mesmo que fazer tudo isso não sirva para nada).
Hihihih, perfeito. Última pergunta, Bi, e prometo não te aporrinhar mais. Ao menos, não por enquanto. (piscadinha) Mas gostaria que você fosse sincera. Como foi para você ser abduzida?
Bom, eu não me lembro, né? Faz parte da abdução bem feita a parte de você não se lembrar de nada.
Total.
E posso garantir que a minha abdução foi bem feita, porque eu não me lembro de porcaria nenhuma.
Melhor assim. Amore, (segurando suas mãos) obrigada pela entrevista. Aceita uma sobremesa?
Tem sorvete?
Claro que tem. De que sabor você quer?
Oh, chocolate!
Tem vários aqui! Tem um belga que meu deus do céu…
As duas se levantam para espiar o refrigerador onde ficam os sorvetes de diversos sabores, um verdadeiro paraíso. Deisy e Bianca parecem duas mocinhas, salivando de felicidade sobre tanto sorvete, contrapondo ao espanto de todos que veem um enorme urso pardo entrar calmamente no bar, seguido pelo sorriso de uma mulher vestindo blusa de flanela xadrez e calças pretas. Quando avista Bianca, diz: “Hi!”. O sorvete e o queixo das duas despencam. Não preciso dizer quem são, preciso?
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